No universo das relações de crédito, é comum que produtores rurais, empresários ou cooperados se deparem com dificuldades para honrar compromissos financeiros. Nessas situações, muitos acreditam que, pelo simples fato de atuarem na atividade agropecuária, os contratos de financiamento firmados com bancos ou cooperativas devam ser automaticamente tratados como crédito rural. No entanto, essa confusão entre contratos de natureza bancária e operações típicas de crédito rural pode gerar efeitos jurídicos indesejados, especialmente quando se tenta suspender a cobrança ou impedir o leilão de bens dados em garantia.
Para que uma operação financeira seja enquadrada como crédito rural, não basta que o contratante seja produtor ou que o valor tenha sido utilizado em atividade agrícola. É necessário que o contrato atenda a exigências formais específicas, previstas em normas como o Manual de Crédito Rural e em resoluções do Conselho Monetário Nacional. Entre essas exigências, destacam-se a vinculação dos recursos a programas governamentais, a fiscalização do uso do crédito e a indicação expressa, no contrato, de que se trata de operação rural.
Quando o contrato firmado é uma Cédula de Crédito Bancário, regida pela Lei nº 10.931/2004, com recursos próprios da instituição financeira, sem destinação controlada ou cláusulas típicas do crédito rural, trata-se de um empréstimo de natureza bancária comum. Mesmo que o tomador seja produtor rural, essa operação não se submete às regras específicas da política agrícola. Consequentemente, não se aplicam, nesses casos, os mecanismos legais de prorrogação compulsória, reestruturação forçada ou renegociação automática por eventos climáticos ou de mercado, conforme estipula o Manual de Crédito Rural.
É importante compreender que, no âmbito judicial, a revisão de cláusulas contratuais e a suspensão de medidas como o leilão de um imóvel dado em garantia dependem de prova robusta da existência de cláusulas abusivas ou da prática de condutas ilegais pela instituição credora. Alegações genéricas ou baseadas em documentos unilaterais não são suficientes para justificar medidas urgentes que interrompam a execução de um contrato válido.
A jurisprudência dos tribunais superiores, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, tem reiteradamente decidido que a simples propositura de ação revisional não impede a caracterização da inadimplência. Isso significa que, mesmo discutindo judicialmente o contrato, o devedor continua em mora até que fique comprovado judicialmente que há vício contratual relevante que justifique a suspensão da cobrança. Ainda assim, a boa-fé objetiva impõe ao devedor, no mínimo, o dever de depositar nos autos o valor que considera devido, se pretende evitar a continuidade de atos de cobrança ou a perda do bem.
Outro equívoco comum diz respeito à tentativa de aplicar regras do crédito rural em contratos que, embora eventualmente relacionados a atividades do campo, não foram formalizados como tal. A tentativa de ampliar, por analogia, os benefícios legais do crédito rural para contratos bancários desafia o princípio da legalidade e compromete a segurança jurídica. Quando há inadimplência e o contrato está garantido por alienação fiduciária, como é comum nas Cédulas de Crédito Bancário, a legislação especifica acerca da alienação fiduciária é clara ao prever que o credor pode consolidar a propriedade do bem e promover o leilão, desde que obedecidos os procedimentos legais.
Suspender essas medidas apenas com base em afirmações não comprovadas ou sem contraditório adequado pode causar grave desequilíbrio entre as partes. Afinal, o sistema financeiro depende da confiança e da previsibilidade. Permitir a suspensão generalizada de garantias sem fundamentos sólidos pode desestimular a concessão de crédito, prejudicar a atividade econômica e, paradoxalmente, comprometer o próprio setor produtivo que se pretende proteger.
Por isso, é essencial que os contratos sejam corretamente qualificados desde sua origem, que os tomadores conheçam a natureza jurídica da operação que estão assinando, e que, em caso de controvérsia, as discussões sejam conduzidas com base em provas técnicas, respeitando o contraditório e os limites da legislação vigente. A proteção do devedor não pode se dar à custa da insegurança jurídica nem da inversão injustificada do ônus contratual.
Rafael Souza Ferraz da Costa, advogado na MAR Advocacia, pós graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil, com mais de 10 anos de experiência em Direito Bancário e Direito Agrário.
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